Atire a primeira pedra quem, pelo menos uma vez, esquivou-se de passar debaixo de uma escada? Ou cuidou de manter bem guardado um trevo de quatro folhas? Por mais absurdas, inverídicas e insanas que sejam, e sabemos que são, superstições existem. Estão no inconsciente coletivo, e são tantas que numerá-las é impossível. Assim, sem perceber, e mesmo sem acreditar, acabamos dando-lhes certa confiança. A origem delas? Heranças ancestrais, cultura popular, lendas e folclore das diferentes regiões do mundo: orientais, ocidentais, africanas, indígenas... Tanto para os mais crédulos, como para os menos crédulos, algumas crendices funcionam como medida de precaução, como termo de garantia, sabe-se lá! Enfim, como bem diz aquele ditado espanhol, yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay...
Com frequência bem maior que a desejada, tenho mania de dar três batidinhas sobre uma superfície de madeira, para espantar maus presságios ou pensamentos negativos. Acompanhando este gesto, algumas vezes ainda clamo o mantra “pé de pato mangalô três vezes”, para reforçar a intenção... É ou não é uma idiotice?
Minha prima mantém pendurado, na porta social do seu “apê”, um punhado de palha de milho amarrado com fitas verde, amarela e dourada. Afirma que tal mandinga atrai dinheiro. Precavida, ainda toma o cuidado de jamais colocar a bolsa no chão, pois acredita que isso “espanta” o dim-dim. Ontem apareceu lá em casa, para bater um papinho. Ao sair, me pediu dez reais para o táxi, pois estava desprevenida. Peguei minha bolsa, que por acaso estava jogada no chão, e puxei vinte reais da carteira. Por pura gozação, disse que quando esqueço a bolsa no chão, as notas de dez transformam-se em notas de vinte. Não a convenci, é claro, mas notei certo espanto em seu olhar.
Um colega de trabalho é louco por gato, desde que não seja preto. Se avistar um na rua, chega mesmo a mudar de rumo para não ter que cruzar com o azar. Em casa tem dois felinos, brancos e endiabrados. Dia desses tropeçou num dos bichanos e, para não ferir a pata do animal, acabou caindo e quebrando o próprio pé. Não resisti e comentei como teria sido se o gato fosse preto... Ele respondeu, convicto, que se assim fosse teria quebrado a perna!
O fato é que independente de religião, nível social ou grau de instrução, muita gente boa, ou nem tão boa assim, se apega às crendices. Nos servimos delas, consciente ou inconscientemente, na certeza que se não fizerem bem, mal também não farão.
Mas quando as querelas são de ordem afetiva, a coisa muda de figura. Há quem apele para feitiços bem mais radicais. E nesta seara, os “remédios” são absolutamente surreais. Pois é, o coração tem razões que a própria razão desconhece! Se algumas pessoas abusam da arte de acreditar em qualquer sandice, outras tratam de explorar a credulidade alheia. Ou seja, para cada incauto que apareça, existe um charlatão à postos, esperando para dar o bote. Falsas ciganas, gurus trapaceiros, cartomantes inescrupulosas, pais-de-santo fajutos; enfim, os farsantes são muitos. Pior é que essa corja lança mão de propaganda enganosa, para atrair os ingênuos, ou desesperados, de plantão.
Os postes nas ruas aqui do Rio não me deixam mentir. Estão sempre recobertos com papelotes toscos, colados uns sobre os outros, anunciando promessas desvairadas,tais como: “Devolvo a pessoa amada em três dias...”, “Amarração forte, trago o seu amor de volta em sete dias, palavra do Pai Ogum...”, e por aí seguem as tolices mais absurdas...
Outro dia fiquei impressionada com a audácia descrita em um desses papeizinhos. Anunciava, com letras em negrito, a seguinte pérola: “Não me pergunte como, mas eu, Urug Uxê, garanto trazer o ser amado em 48 horas!”. Assim mesmo, com ponto de exclamação no final. O que será capaz de fazer ao dizer “Não me pergunte como”? Melhor nem saber as bizarrices que podem surgir de mente tão demente... Uma coisa é certa, a figura entende de marketing. A começar pela escolha do nome de guerra, uma matreira corruptela. Repare ainda que o espertalhão substituiu dois dias por 48 horas, à guisa de criar impacto para provar o seu poder. Três ou sete dias já prometem os concorrentes. Então, com este diferencial, o astuto guru garante o feito em menos tempo.
As leis selvagens do capitalismo chamam essa injusta prática comercial de dumping. Ou seja, concorrência desleal. O sagaz trambiqueiro cobre qualquer oferta. Tal e qual fazem as grandes lojas do varejo. Só faltou dizer que aceita cartões, vales-transporte e vales-refeição. Pobre de quem cai numa cilada dessas. Será que alguém, em sã consciência, imagina que pode recuperar um afeto perdido com este tipo de apelação? Como acreditar que o ser amado, que saiu de cena em busca de outras paisagens, possa voltar em dois, três ou sete dias? É muito pouco tempo para um arrependimento...
Pelas barbas de Netuno, crendice tem limite!
(Elmira Mattos)
sábado, 14 de agosto de 2010
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
EXEGESE
“Cheguei, chegaste...”
Estava escrito em uma folha branca
sobre a minha mesa.
Tentei inutilmente decifrar
a mensagem contida naquele pedaço de papel:
“Cheguei, chegaste...”
A estranha sensação, porém,
de não me lembrar de tê-la escrito
furtou de minha memória coisas antigas,
já corroídas, fadadas há muito tempo ao olvido:
As noites em que meu lirismo, ingênuo
se manifestava diante de você.
E você, profundamente atenta,
sorria sobre o espírito do poeta.
As noites em que a lua crescente
Brilhava minguante sobre a noite cheia.
Em que nos abraçávamos tão forte
E ansiosamente,
Como se quiséssemos estrangular a vida
Pendente entre nós dois,
Formando um só corpo,
Compacto, andrógino, metade eu, metade você.
“Cheguei, chegaste...”
E jamais esquecerei
quando ao meu encontro você veio,
Derramando cores em cada passo,
como um frágil cromo errante
pela rua estreita.
O olhar inebriado de avidez e libido,
sob a lâmpada pálida
de uma luminária de rua.
“Cheguei, chegaste...”
E, hoje, ao chegar à casa
encontro você novamente...me olhando
(como um vulto enorme)
do fundo de uma frase quase ininteligível,
quase sem nexo,
numa folha branca
sobre a minha mesa.
Hoje, que tudo leva-me a pensar
em meio às vozes mágicas
que declamam poemas em minha mente.
Hoje, em que a identidade sonora das palavras
se confunde, num fatal descuido,
com as velhas coisas empoeiradas.
Um hoje que já é passado,
Como o vocábulo final de um verso:
Hoje – que não voltas mais.
(Costa Pinto)
(fragmento de verso incidental do poema “ Nel Mezzo Del Camim de Olavo Bilac: “Cheguei, chegaste. Vinhas fatigada...”)
(foto do Autor "Por-do-sol")
O Maquinista das Estrelas
Muito já se ouviu falar do maquinista das estrelas. Mas eu guardo para mim a derradeira visão que tive dele, sem contar a ninguém.
Na minha vida de cosmonauta tenho tido vários problemas, desde a aparição do último disco voador a seis anos atrás.
Ele surgira no espaço rápido como um cometa, e suas luzes coloridas por sobre a cauda quase conseguiram cegar-nos.
Lembro-me que éramos três na cabine da nave: Pierre Sainssons, um francês de meia-idade tido, nas altas rodas, como contrabandista espacial, que ficara rico em vender pequenas amostras de rochas lunares a geólogos de pouco caráter; Vladimir Kulutov, russo, indefectível remanescente da terceira revolução de seu Estado, eminente sociólogo e engenheiro de bordo, e eu.
Vladimir examinava os aparelhos e Pierre e eu resmungavamos algo sobre o possível desvio da rota, quando o luminoso objeto surgiu diante dos nossos olhos perplexos. Imediatamente nos atiramos aos controles tentando evitar o choque fontal com o disco, aproximadamente cinco vezes maior que a nossa nave. Porém, não conseguimos evitar um pequeno abalroamento que nos danificou um pouco as retinas e a asa direita de nosso aparelho.
No receptor, uma voz soou ininteligível e rouca como um palavrão desferido aos nossos ouvidos à crítica de nossa imperícia:
- Laca visum xsptley
E continuou a estranha transmissão, engrolando palavras desconhecidas, até que fosse lentamente afastando-se do local o estranho objeto.
- Xsptley laca neo pendum. Laca pendum...laca pendum...
Quando desapareceu, olhavamo-nos silenciosos e confusos sem saber o que dizer um ao outro. Várias hipóteses foram aventadas para conceituar o misterioso objeto e optamos por fazer um imenso relatório sem margem às dúvidas sobre o estranho fenômeno.
Vagamos pelo espaço sem rumo muitos dias, até que pudéssemos reparar os danos e retornar a Terra. Porém, melhor seria termos ficado vagando pelo espaço.
Com a publicidade gerada em torno de nossas declarações principiaram submetendo-nos a diversos testes de sanidade mental e afetação que prorromperam numa quarentena humilhante e desagradável. Alguns julgavam-nos exibicionistas e mentirosos. Outros diziam que a irrealidade de nosso relato era bastante comprometedora. E os testes e inquirições continuavam.
Eu evitava, sempre que possível, comentar o polêmico assunto, porém meus companheiros não pensavam da mesma forma e “soltavam a língua” de forma inadvertida, sensacionalista e fantasiosa.
Não durou muito, tomaram-nos por loucos. Tive que negar os fatos uma centena de vezes para me ver livre das admoestações. Contudo, Pierre e Kulutov recusaram-se a serem sensatos e foram internados em um sanatório para pesquisas. Até hoje não sei se ainda continuam por lá.
Com o encerramento do caso, morreram a publicidade e a opinião pública.
Vieram as novas viagens. Agora, eu as realizava sozinho. Navegava meses entre as estrelas e os asteróides. Passeava pelas crateras lunares e contemplava o azul da Via Láctea. Passava as horas procurando ouvir o som do universo e admirando os astros como uma grande orquestra.
Um dia, sem querer, fiz a maior façanha já decantada pela história cosmonáutica: pousara em Marte, mediante um pequeno erro nos cálculos. Isso me valeu, ao voltar, a maior parte da fama que possuo hoje. Marte era como um disco: árido, compacto e estéril.
Os jornais propagram o meu feito, e em todos os lugares do mundo podia-se ver o meu rosto em manchetes de revistas e jornais, meu nome escrito em letras garrafais até em latas de conservas para maionese.
O dinheiro veio junto com a fama e resolvi em viagens conhecer mais terras que não conhecia. Fiz as malas e embarquei para a Suiça.
O avião pousou leve sobre a pista nevada do aeroporto.
O branco da paisagem emoldurava um belo quadro de quietude e pureza. A claridade intensa do nascer do sol refletido sobre as pedras e escarpas doía-me nos olhos. Cada coisa parecia possuir sua própria alma e conservando-se intocável. O vento frio soprava com uma personalidade definida, fazendo-me estremecer os lábios ressecados.
Depois de um rápido passeio pela cidade a minha sede de alturas comprimiu-me o peito manifestando sua vontade de conhecer as montanhas.
Havia um pequeno e antigo expresso composto de uma velha maria-fumaça engatada a apenas dois vagões de passageiros, corroídos e empoeirados, que fazia o trajeto recortado sobre os montes.
O maquinista, um senhor de muitos quilos e suíças grisalhas, de uma simpatia incomparável, aparentava ter nascido no mesmo tempo que a locomotiva. Porém, a sua constituição forte e musculosa sob o rosto rosado e sorridente disfarçava os muitos anos de vida e história, depreendidos pelas mechas brancas que lhe caiam até os ombros.Trazia o boné, provalvelmente confeccionado a dois ou três séculos atrás, enterrado até o limite das sombrancelhas com a aba levantada sobre a oculta testa.
Não demorou muito para que eu me aercebesse ser o único passageiro para o longo trajeto. Tal condição gerou um breve calafrio que percorreu célere toda a minha coluna vertebral: talvez ninguém amis viajasse ali pela falta de confiança no velho.
Olhei novamente o roteiro que se apresentava rasgando as montanhas nevadas, os muitos abismos, e hesitei ao colocar o pé no primeiro lance de escada do vagão ligado à máquina. Ir ou desistir de imediato era a questão. E pensei cá comigo mesmo:
- Ora bolas, quem tantos perigos já enfrentou na vida, ter medo agora de uma simples viagenzinha turística. Que bobagem!
Escolhi o banco mais largo e confortável perto da janela e deixei-me debruçar sobre ela como uma criança.
A locomotiva deu três apitos e colocou-se em marcha.
A neve sobre os pinheiros me trazia à lembrança histórias contadas por meu avô nos vários natais que passamos juntos: “- Era uma vez um duende mágico na floresta nevada...”
Pena que não estivesse ainda vivo para que pudesse partilhar essa maravilha. Lembro-me nitidamente que, naquelas ocasiões, aquele garotinho de cara suja, três ou quatro palmos de gente feliz, se regalava criando imagens imaginativas de todas as partes de cada história. E, às vezes, interrompia o velho, com firmeza infantil: Ah, Vovô! Essa você já contou duas vezes.
A fumaça da máquina batendo a estrada rompia o céu como um pássaro negro.
A primeira estação ficava numa pequena vila ao sul da cidade. Nela paramos e eu fiquei à janela contemplando bonecos de gelo feitos pelos garotos na rua. Ao longe, divisava-se o casario em tons azuis e verdes sobre a neve.
Distraidamente abri o roteiro para relembrar o trajeto, quando dei, com um susto, pela figura do velho maquinista sentado a minha frente.
Ele sorriu, apertou-me as mãos com um gesto carinhoso e manifestou-se:
- Desde o início da viagem que espero por essa parada para que pudessemos conversar. Não existem muitas pessoas para se conversar por aqui, principalmente quando se tratam de astronautas famosos.
Sorri à cortesia do velho e respondi à gentileza com uma palmadinha fraterna em seu braço.
Na verdade, se o maquinista era uma figura agradável, bem mais agradáveis e divertidos eram os seus casos.
Contou-me sobre os tempos passados, envolvendo-me com deliciosas histórias pinçadas cuidadosamente da velha arca de suas lembranças. E eu, por minha vez, intercalava, a seu pedido, casos comuns de minha vida corriqueira somados às dezenas de viagens pelo cosmos, que ele parecia saborear com interesse e satisfação crescentes que me faziam sentir como um verdadeiro herói dos folhetins ficcionistas da época de criança.
O certo, é que o homem havia cativado a minha amizade e minha admiração de tal forma que sentí, enfim, coragem de trazer novamente à tona o caso acontecido anos antes, o abalroamento ocorrido com a nave, a estranha transmissão; tudo, tudo, diante dos olhos atentos do velho.
Para minha surpresa, o maquinista recebeu os fatos com espantosa serenidade, sem aquele sorriso de descrédito e dúvida ou malícia que sempre brotavam nos ouvintes quando meus ex-companheiros divulgavam ingenuamente o acontecido. Além disso, revelou-me que seu maior sonho sempre fora viajar pelos espaços, tocar as estrelas e conhecer novos mundos.
Não conseguia me livrar da nítida e estranha sensação de já conhecê-lo há vários anos, ou desde sempre. Talvez a lembrança de meu querido avô, que frequentava incessantemente as minhas retinas, tenham palmilhado de maneira incisiva essa descabida impressão.
O prosseguimento da viagem se fizera tranquilo e sem novidades. A chegada era numa estaçãozinha próxima a “Porte du Village”, de uma beleza e uma graciosidade jamais vistas.
Despedi-me do homem com um forte abraço e a promessa de um dia retornar.
O dinheiro e as férias terminaram rapidamente e eu teria que voltar a voar pelo espaço.
Meses depois, reiniciaram os treinamentos e as missões. Os vôos se alternavam e eram rotina. As velhas rotas espaciais já não ofereciam mistério algum.
Passaram-se mais dois anos. Houve um projeto de voltar à Marte e eu fôra escalado para a missão. Antes disso, porém, teria um descanso de dois meses.
Pensei em voltar à suiça para rever as minhas montanhas. E três dias depois já arrumava as malas.
O avião pousou novamente sobre a pista nevada do aeroporto.
Tudo estava exatamente como eu havia deixado. A cidade e os letreiros luminosos sobre a esquina pareciam me reconhecer a cada passo como se estivessem felizes pelo retorno. Os muitos copos de conhaque conseguiram amenizar o frio ainda maior. Fiz planos de rever as montanhas e o meu velho amigo para o dia seguinte, e fui dormir.
A manhã se abrira com um sol preguiçoso sobre os tetos das casas derramadas em frente ao hotel.
Cruzei a avenida e entrei pela ladeira da antiga estação. A locomotiva estava como antes, repousando sobre os trilhos gastos à espera dos raros passageiros. E como sempre, eu era o único.
Corri os olhos pelo interior da máquina na esperança de surpreender o velho. Porém, fui eu quem me senti surpreso ao surgir na plataforma um rapaz que não conhecia. Quando deparou-se comigo no primeiro vagão acentuou um leve sorriso por baixo dos bigodes cheios:
- Que satisfação, moço! Esse tédio já estava me aborrecendo. Não é sempre que posso conduzir algum passageiro. O senhor entende como é?..com estes novos e modernos aparelhos de locomoção, ninguém mais se interessa em antigas viagens como esta, a não ser por diversão ou turismo saudosista. É raro termos um passageiro. Com isso, o tédio fica insuportável. Certa feita, passei cerca de dois meses sentado proximo à caldeira sem ter nada o que fazer, sem niguém para conduzir.
Fiquei pensativo por uns instantes, e logo com um sorriso ponderado retruquei:
- Mas você éo o atual maquinista? E aquele senhor...?
O rapaz não me deixou concluir a pegunta:
- Ah! O velho Calídno...Então o senhor não soube?...Ele faleceu no ano passado. Encontraram-no caído de costas na neve, com os olhos bem abertos para o céu. Dizem que foi um enfarto fulminante. Outros afirmam que caiu do trem. De minha parte, fico com essa segunda versão, enfim estava muito velho e já não enxergava bem.
Nada poderia ser tão duro para mim quanto aquela revelação. Repetia-se a mesma desagradável e avassaladora sensação quando da morte de meu avô. O espanto e a tristeza das lembranças contraíram-me o semblante.
Na viagem, não houve mais beleza pela paisagem e enm pela branca neve. A enorme tristeza acentuou toda a trajetória e o frio, antes nem sentido, enregelava-me as pontas dos dedos tesos sobre a face contrafeita.
Os dois meses de férias passaram rapidamente.
Os testes para o lançamento foram reiniciados e em menos de quatro semanas estavam concluídos. Tudo pronto.
Me lançaram ao espaço.
Nada de novo havia. As estrelas conservavam o mesmo brilho e as mesmas cores. Os asteróides passavam pela nave, lépidos e fumegantes.
O silêncio era total, e dentro da cabine apenas os ruídos familiares dos aparelhos.
Repentinamente, os meus ouvidos foram feridos por três apitos agudos que cruzaram o espaço.
Um ruído enorme ia crescendo lá fora.
Num sobressalto passei a mão espalmada sobre o vidro embaçado da escotilha e perscrutei as imediações.
O ruído aumentou como que aproximando-se da nave e uma luminosidade enorme quase me cegou.
Contraí os músculos do rosto e apertei os olhos sem querer acreditar no que via:
Sentado sobre a cauda de um cometa, que atrelado a inúmeras estrelas cadentes, lá ia o velho maquinista Suiço a descrever semi-círculos no céu.
Quando passou por mim, acenou de leve com as pontas dos dedos e segurou cortezmente a aba do velho boné.
Rapidamente foi desaparecendo entre os planetas e já longe podia-se escutar seus gritos eufóricos pelo espaço:
- Xspitley laca pendum!
Laca pendum...laca pendum.
(Costa Pinto)
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
PEQUENA CANÇÃO PARA A AMADA
É inútil buscar na face da mulher amada a face de Deus
quando ela é a sua própria face.
É impossível soltar-se a êsmo pelo espaço
quando o amor, com sua mão mais firme,
nos segura, acaricia e prende com desvêlo.
É absolutamente desnecessária a procura da vida
quando esta se encontra latente
em cada longo beijo roubado dos lábios dessa mulher.
Em cada pulsação que se defaz e desalenta no peito do amante,
quando o sol morre no horizonte como um grande pássaro abatido.
Quando a esperança de renascer em cada poesia
vai cobrindo de versos todo o corpo da amada
e faz reviver o poeta,
como um mágico, um Deus ou um Atlante.
É profundamente irreal cada procura, cada gesto,
cada contração, cada espasmo diante da amada.
Pois ela é o próprio ser dentro do ser,
o próprio gesto dentro do gesto,
a própria contração que penetra o espasmo
e aflora num orgasmo maior,
em face da angústia de sentir-se amado.
Ela é como respirar sem nenhum alento.
Assim como viver sem ter tido vida,
ou agonizar sem ter morrido nunca.
Assim como uma pulsação enorme
dentro de cada pulsação, dentro de cada veia.
Banhada em dor de sangue e festa
nas gotas derradeiras da canção.
(Costa Pinto)
sábado, 7 de agosto de 2010
ECCE HOMO
Já não tens mais que um só canto a cantar
tua canção dessa eterna desventura.
E esse medo que o amor se mate,
sem que aplaque essa dor que te tortura.
Já não tens mais que um só caminho a trilhar,
semeando em cada terra essa loucura.
Já não mensuras a distância dos teus passos,
nem mais te abrigas no tom íntimo da ventura.
Já não tens mais porque chorar de agonia.
Maldade e dor: feias irmãs do desencanto
sustentam firme a cruz pesada da inconstância.
Teu rosto grave, onde uma lágrima fugidia
escorre breve, e umedece o teu manto,
morrendo, enfim, nesta infinita dor-distância.
(Costa Pinto)
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