sexta-feira, 29 de outubro de 2010

PESADELO



Ontem à noite,
quando me vi sobre o espelho:
uma imagem estampada, sem cor, sem nervos,
sem espaços;
senti profundamente a alma a perfurar-me os olhos
e a vomitar o sangue sobre os meus sapatos.


Meus dedos se crisparam e, tesos como o ferro,
tentaram, ainda assim, mover o meu desgosto.
os meus braços,
os meu tronco,
os hemisférios -
meus lábios que calavam e feriam a si mesmos.


Ontem à noite,
quando o guardião tocava flauta
e do céu choviam gotas de fel e carmim,
o arcanjo, o pirilampo, o demo e a toutinegra,
todos voavam loucos por dentro de mim.
E dentes, largos espetos, espinhas, florins.
iam pouco a pouco me dilacerando,
me rasgando o peito,
tocando o meu sexo,
cuspindo em meus pés.


Ontem à noite,
Quando a madrugada me encontrou envolto
nessa baba grossa, nessa dor-demência
desse desafio, sem poder viver;
soltei meu grito alienado,
que, ressoando intenso, envolvendo tudo,
ia corroendo os sonhos e presságios
como se quisesse em desespero libertar a paz
e dizer , firme e sem receios,
que ainda existe algo eternecido,
como um brado doce a reencetar a vida.
Ecoando, erguido, sobre os condenados e proscritos.
Dizendo, falando alto, apregoando
Que apesar de tudo, mesmo amordaçado,
Eu amo vo
cê!

(Costa Pinto)

(imagem extraída do site:"projetotecnologia.pbworks.com")

SONETO PARA UMA PAISAGEM



Tenho brotado tantas vezes dessa mesma terra,
que já não sei a flor que represento em mim.
Tenho sido relva no colo de uma serra,
ou o arvoredo na planície, enfim

tenho sido o campo inteiro, sem ter sido nada.
Nem flor, nem relva, nem terra ou areia.
Tenho sido sempre do meu conto a fada.
Tenho sido lua, sem ter sido cheia.

Quantas vezes brotei da terra e vou morrer
na mesma terra ao declinar do dia.
Sinto em mim o vento, o estremecer.

As pétalas do meu corpo, em desalinho,
se destacam sobre a terra fria.
E novamente vou morrer sozinho.

(Costa Pinto)

(imagem extraída de "www.fotosgratis.fot.br") 

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Poemas selecionados


-João Felinto Neto-


APELO À MISÉRIA

Quem me dera, miséria,
eu fosse parte
de um baluarte de sonho e de quimera.
Pela boca mantém-se assim o povo,
a lavagem é a comida que a si, dera.
Na vergonha de reconhecer-se porco,
ter o rosto metido na sujeira,
enlameado atrás de uma porteira
seu anseio é mantido na espera.
Quem me dera, miséria,
eu me calasse
e ocultasse o meu rosto na janela.
Meus princípios mantêm-me assim exposto.
Sou mau gosto travado na goela.
Quem engole as palavras que eu digo
traz de volta a vontade de lutar,
elas tocam a ferida no umbigo
que o conformismo já ia cicatrizar.
Quem me dera, miséria,
quem me dera,
que de ti eu pudesse me livrar.



PERSONAGENS INFANTIS

Será que o lobo é tão mal.
O lobo ama também.
Ele protege os filhotes que tem.
Caçar, para ele é natural.
A chapeuzinho, talvez,
quando crescer seja outra.
Se torne uma megera
que não gosta de criança
e perca toda a esperança
de voltar ao que era.
O caçador, o herói tão valente
que salvou a vovozinha,
costuma matar friamente a fêmea,
deixando a cria sozinha.
Ele acabou sendo preso
por caçar ilegalmente.
A vovozinha morreu.
Pois, a idade a levou.
Mas, quantas vezes brigou com a vizinha da frente.
Isso prova que a bondade e a maldade,
na verdade,
são apenas uma história diferente.


O POEMA QUE EU DEIXEI DE ESCREVER

O poema que eu deixei de escrever,
Falaria de você,
De nosso tempo,
De angústia, de tormento,
De alegria e de prazer.
Iria contradizer
Cada palavra
Que as nossas falas
Tinham pouco a dizer.
O poema que eu deixei de escrever,
Seria na verdade,
Uma ameaça.
Calaria minha boca,
Qual mordaça.
Não seria uma desgraça,
Por não ser.
Os meus versos,
Talvez fossem sem querer,
Uma ofensa
A sua crença,
Que eu acreditava
Ter.
O poema que eu deixei de escrever,
Não seria
De valia.
Sem valia,
O deixei de escrever.



SEPULTAMENTO

Os meus olhos pregados
no infinito
como os pregos nas tábuas
cravejados,
e de pontas viradas,
redobrados,
sustentados e fixos
numa curva.
No aconchego da madeira macia,
minhas costas
nos ossos da bacia
consolam meu corpo
tão curvado.
Pelo tempo que tenho acumulado,
a ferrugem do mundo
me comeu,
e a tampa que pregam
me prendeu
para sempre num rito consumado.
Por debaixo da terra
condenado
a ser parte da mesma
e não ser eu.



CANTO DE SEREIA

Como um canto de sereia
de belíssima harmonia,
letra correta, verdadeira poesia
e melodia
que eterniza nossa alma.
Por onde anda
a sereia encantada
nas profundezas desse mar de ignorância?
Letra incorreta com falta de concordância
e melodia
que nos faz perder a calma.
Só na lembrança,
o teu canto nos enleva
na emoção que tua voz nos faz sentir
e na saudade, o nosso coração desperta
pra realidade,
não há nada mais pra ouvir.



PEDESTAL DE BARRO

Revogo silêncio
ante palavra e voz.
Reato os nós
que me prendem ao medo.
Reavivo memórias
em busca de segredos
que já não interessam mais.
Reclamo por paz
em meio a intensa guerra.
Replanto a erva
que não nasce mais.
Relato as dores
de males e fome.
Repito o meu nome,
antes de dormir.
Reato os laços
que me prendem aqui,
ao pedestal de barro.


TORRE DE BABEL

O juiz do supremo,
Jeová,
se irrita e sai do sério,
quando seu filho Jesus
vai à noite, ao cemitério.
No boteco do Davi,
onde quem manda
é o Golias,
não há funda,
quem afunda
na cachaça, é o Isaías.
No salão do senhor Sansão,
quem faz o cabelo
é sua mulher Dalila.
As mulheres de Salomão,
o cafetão lá da vila,
choram e sentem solidão
quando estão de barriga.
Lúcifer anda arrasado,
o seu mundo virou trevas,
por ter visto abraçados,
Adão e a senhora Eva.
Noé, o velho barqueiro,
não gosta de animais.
No entanto, adora um peixe-frito
no barzinho lá do cais.
Essa torre de Babel
é o mundo em que vivemos,
onde não há inocência.
Se algum nome ou fato ofender,
é mera coincidência.


A MULHER DA MINHA VIDA

A mulher da minha vida,
Sempre é lida em meus versos,
De uma forma ou de outra.
É a sua voz que ecoa
Reclamando meu regresso.
É bem mais que uma amante,
Que uma amiga e companheira.
Necessária como a fonte
No deserto de areia.
A mulher da minha vida,
Entre linhas abstratas,
Põe em mim, doces palavras
E expressão de alegria.
A resumo em poesia,
Tal qual em cartas,
A saudade que nos mata
Se envia.
A mulher da minha vida
É a graça
Que um devoto em desgraça,
Alcançaria.




À DERIVA

Posso até perder o brilho dos meus olhos,
Mas jamais, deixar de ver tanta tristeza.
No esbanjar de pratos sobre minha mesa,
Vejo a fome refletida nos teus olhos.
O que faço se estou preso ao sistema
Onde a indiferença
Sobrepõe a caridade,
Onde a verdade
É varrida
Pra debaixo da mentira
E onde a vida
É um barco à deriva
Sem ações de piedade?



UM POUCO MAIS

Percebo
A minha vida esvaindo-se entre meus dedos
Em minha mão aberta
A dar adeus ao mundo
Pela janela.
A minha juventude
Em quietude eterna,
Silencia os meus dias.
As velhas alegrias
São lembranças tristes.
Os sonhos não resistem
Aos carinhos da morte.
E que meu sono suporte
Os meus pesadelos,
Já que meus apelos
Ao que me resta de força
Não me sustenta.
Talvez, o mundo não entenda
Esses meus ais.
Não tenho medo de morrer.
Eu só queria era viver
Um pouco mais.


EPITÁFIO XIV

Ela se aproxima
Sorrateira e linda,
Com seu manto escuro,
Sua mão suada.
Não nos pede nada,
Mas nos toma tudo.
Deixa então, de luto,
A pessoa amada.
Ela não se importa
Com aquele que fica.
Pois só se dedica
Ao que se despede.
Sorrateira, impede
Que a gente viva.
E sutil se infiltra
Sob nossa pele.
Ela só se afasta
Quando mata a alma
E deixa o corpo inerte.


ETERNA SOLIDÃO

O que eu tive na vida
Além da data esquecida,
Da dor no peito, contida,
E da perdida ilusão?
O que mantenho na mão,
Já na forma cadavérica,
Senão,
A luta sem trégua
Com os germes que a terra
Colocou em meu caixão?
Os meus feitos,
Foram em vão.
Meus defeitos,
Exaltados.
Não sou de Deus nem do Diabo.
Sou um louco condenado
A eterna solidão.


ESPANTALHO MORIBUNDO

Minha alma sempre está
Num silêncio tão profundo,
Que eu chego a duvidar
Que ainda estou no mundo.
Espantalho moribundo,
Onde a morte vem pousar.
Talvez para lhe falar:
Sinto muito! Sinto muito!
Num milésimo de segundo,
Volta o corpo a respirar.
Espantalho vagabundo,
Fecha os braços para o mar,
Abre os olhos para o mundo.



FRUTO SEM CASCA

Espalhando letras
Sobre velhas páginas,
Semeei palavras
Que insatisfeitas
Deram-me em colheita
Uma grande safra
De um fruto sem casca,
A minha tristeza.
Uma fruta fresca,
Presa pela boca
Em que uma ou outra
Tenta mordiscar,
Murcha sem parar;
Se tornando feia,
Seca na areia
Quando o vento dá.
Versos pelo ar,
Lágrimas e poeira,
Solidão na mesa
Onde o fruto está
Exposto, sem par,
Sem mostrar beleza,
É minha tristeza
A me alimentar.


HOMENS DE FUMAÇA

No arrastar de minhas sandálias
Pela casa,
Tenho as lembranças arranhadas
E esquecidas.
Por onde andam as conversas conduzidas
Pelos homens de fumaça?
Se desfizeram com o tempo,
Nas costas de um tênue vento,
Pela janela escancarada.
O velho barco na distância, ainda aguarda
Pela tripulação dispersa,
Numa espera
Que parece eternizada.
Em meio a tralhas,
Depuseram suas velas.
Em meio a elas,
O seu capitão se apaga.



O FRACASSO

Eu sei que a vida me leva em trapos.
Caldeirões de barro
De bruxos modernos.
Favelas de inferno,
Diversos buracos.
São armas de ferro.
São balas de aço.
Sou eu, o fracasso
De um programa sem sucesso.
Eu sei que a morte me olha de perto;
Que chego a sentir o seu frio abraço.
Eu fumo, eu prego
Minha mão no maço
De notas sem eco.
São barras de ferro.
Algemas de aço.
Eu sei que sou o fracasso
De um programa sem sucesso.
Eu sei que caminham lado a lado,
O errado e o certo,
A ira de Deus
E a fama do diabo,
Senhores e servos,
Patrões e empregados,
Progresso e atraso.
São os mãos-de-ferro
Em torres de aço.
Sendo eu, o fracasso
De um programa sem sucesso.